sábado, 20 de dezembro de 2008

Capitu: alto padrão global.


Michel Melamed como Dom Casmurro em Capitu.

Por Flávio Viegas Amoreira

Não esperava tecer adjetivos benevolentes à TV: a Internet sepultou o grande apelo que a telinha tinha 20 anos atrás. A informação ágil do computador, a leitura aprofundada e o cinema só seguram um pós-moderno para conteúdos sofisticados: cult-movies, documentários ou debates instigantes. Não vejo TV: pinço raros conteúdos. Capitu de Luiz Fernando Carvalho rendeu alguma polêmica entre intelectuais, mas foi rejeitada pela massa despreparada e pela burguesia inculta (em sua maior parte) brasileira. A Globo sai redimida do nefasto BBB e das "malhações" vespertinas. Capitu inseriu a transmodernidade no suporte televisivo: experimentação sofisticadíssima, parodia e pastiche luxuosos, transposição digna de Moulin Rougeou Maria Antonieta, clássicos desse modelo de "mix" entre pop e erudito, mundano e clássico, alternando efeitos de videoclipes com toques operísticos: além do não-naturalismo dramatúrgico, como se o demiurgo da trama fosse um DJ de sons e letras antenadíssimo.

Não só o suposto adultério, mas o "ethos" brasileiro e nossas mazelas foram plasticamente desconstruídas. Bentinho é ruína revista: ambigüidade pura. "A Vida é uma ópera e uma grande ópera. O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra. Que se perde em experimentar? Experimentemos". Esses trechos do Casmurro justificam o entusiasmo com essa possibilidade de inovação e vanguardismo na releitura de Machado e qualquer clássico nacional levado como minissérie: se os jovens desconhecem Machado e nem jornais mais lêem, o audiovisual pode ser "porta de entrada" para quem sabe algum interesse cultural. Rock da melhor qualidade, fidelidade ao texto machadiano, requinte de Visconti com exageros deliciosamente "fellinianos", Capitu evoluiu introduzindo um dos mais preparados e versáteis atores brasileiros: Michel Melamed, amigo e colega de geração literária, um Bentinho revolucionário com toda carga que só círculo restrito da Alta Literatura fornece a interpretes desse porte. Quando penso em Melamed evoco conselho de Marília Pêra aos jovens atores: "leiam! leiam!".

Aos que acharam absurda, ininteligível, pretensiosa ou bizarra adaptação do Casmurro, - corroboro visão de Bia Abramo: "Luiz Fernando Carvalho chegou a obra admirável. Continua difícil, por mais que as referências pop queiram forçar um apelo jovem. A beleza é mesmo difícil". Chegamos a um estágio de idiotização que toda Arte de invenção ou criação não-linear tornam-se "difíceis", herméticas: Capitu deve ter desagradado os acomodados com biografias lacrimosas (Piaf) ou com musicais medíocres (Evita): a pieguice e a futilidade andam quase sempre juntas.

Debussy, Tchaikovsky, cinema mudo, fragmentos e recortes atemporais na batida eletrônica da cyber-esfera fazem de Capitu primeiro clássico televisivo do século XXI. Umberto Eco pode explicar Capitu em Apocalípticos e Integrados quando distingue "cultura de proposta" com "cultura de entretenimento", assim como Melamed em Regurgitofagia propõe "a descoisificação do Homem através da consciência crítica". Conselho para todas as crises pós-2008: criatividade para estarmos altura de grandes respostas. A mediocridade pode ser pior que a ignorância: Luiz Fernando Carvalho fez desafio em horário nobre a ambas. Machado aprovaria: o mundo pede ser visto alto, profundo e alucinadamente.

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